19 de março de 2016

Afetos (bio)Políticos - Ódio

- por Rafael Lauro
Espinosa fez uma das grandes perguntas da filosofia: o que pode o corpo? E não é à toa que hoje o holandês é estudado no campo da Filosofia, Ciência, Política e Psicologia. Falamos demais da alma, mas esquecemos de perguntar e entender o que é um corpo e de que maneiras ele é capaz de ser, estar, agir.
Podemos dizer que poucos conceitos são potentes como os afetos de Espinosa. Eles abrem um enorme campo de análise para melhor nos relacionarmos com a vida. Não é apenas filosofia de gabinete, Espinosa está nas ruas, no dia a dia, na política, nas relações.  Através do conhecimento – o mais potente dos afetos – passamos a identificar com certa clareza quais são os afetos que  regem a nossa vida. Podemos entender melhor o funcionamento deste circuito dos afetos, o modo pelo qual um sentimento, um corpo, uma biologia, se torna inseparável da política.
O ódio é uma tristeza acompanhada da ideia de uma causa exterior” – Espinosa, Ética, parte III, definição dos afetos
Recentes fatos da política brasileira nos remetem imediatamente ao ódio. Por todos os lados, estamos cercados de bocas espumantes, veias saltadas e olhos fulminantes. As televisões não desligam, as rádios tagarelam impropérios, está na boca do povo: “Canalha, pulha, ladrão, vagabundo, corrupto, vigarista, cafajeste, patife”. Quais são as consequências de ter no ódio o afeto (bio)político fundamental?
A simplicidade de um afeto torna-se complexa conforme vai se espalhando. Uma pessoa nos causa tristeza e reagimos odiando aquela pessoa. Deixamos de lado todas as circunstâncias daquela afecção e ligamos a tristeza causada àquela pessoa, objeto ou fato. O ódio está ligado à tristeza, e quando ficamos tristes, a nossa capacidade de pensar diminui.
Tristes, temos cada vez mais ideias inadequadas. Quanto mais entristecidos nos tornamos, mais confusos se tornam os afetos. E assim passamos a odiar a chuva por que ela alaga as nossas ruas entupidas de cimento. Passamos a odiar nossos amigos quando estes não dizem aquilo que queremos ouvir. Passamos a odiar, em suma, tudo aquilo que não toma nosso partido. O ódio liga, faz a ponte entre o estado do meu corpo e o corpo exterior que me afetou. Ele não fala da relação, ele diz apenas do estado do meu corpo e procura uma causa.
Não há falta, o corpo sempre é preenchido por afecções, seja de tristeza ou de alegria! O que pode o ódio? Do que este afeto é capaz? Somos odiosos demais! Ligamos prontamente a tristeza a uma causa. Tão ingênuos. Como  saber as causas com tanta frequência? Muito mais frequente é estarmos perdidos, cansados ou distraídos. Tristes, só sabemos nos mover contra aquilo que odiamos. Ignoramos os conselhos de Zaratustra sobre a honra de se ter um inimigo. Abrimos a boca por pouca bobagem para cuspir mesmo que seja contra o vento. Manifestamo-nos pelo nada, mas contra tudo! Elegemos vilões sem heróis, pois não temos força para assumir a responsabilidade por nossas dores. Dividimos, separamos, excluímos, recortamos a realidade para o nosso mimo. Mia Couto escreveu sobre o mundo de quem tem medo, um mundo pequeno, cercado, em que nada fuja ao controle. O mundo de quem tem ódio é um mundo monocromático. Só há uma cor e oposto dela. Preto e branco; ou vermelho e azul.
Como nos movemos por este campo de afetos? “Quando a mente imagina aquelas coisas que diminuem ou refreiam a potência de agir do corpo, ela se esforça, tanto quanto pode, por se recordar de coisas que excluam a existência das primeiras” (Ética III, prop 13). Tornamo-nos saudosistas ou utópicos! “Amanhã ele vai ver! Ele me paga”, ou então “no meu tempo era diferente, antigamente não era assim!”. Ou pior: “Quem imagina que aquilo que odeia é afetado de tristeza, se alegrará; se, contrariamente, imagina que é afetado de alegria, se entristecerá” (Ética III, prop 23), Espinosa nos ensina que existem alegrias tristes, alegrar-se com a tristeza de alguém é um bom exemplo disso! Esforçamo-nos para que a coisa que odiamos seja afetada de tristeza e odiamos tudo aquilo que a afeta de alegria. Estas são apenas umas das consequências deste afeto.
Ao contrário do medo, que como afeto (bio)político paralisa; o ódio movimenta, mas por vias tortas, não como a alegria, que nos vincula com a vida. O ódio solta bestas ferozes e obedientes, instruídas para morder: “Esforça-se por afastar e destruir a coisa que odeia” (prop 13, corolário). Tristes, somos cada vez mais agressivos. Nasce a desonestidade intelectual e o interesse pelo entendimento raso. Difamamos, revidamos e fechamos os olhos para a pluralidade de posições, para a complexidade dos fatos, “A culpa é de fulano!”. Promovemos uma fé pelo unilateral e começamos a crer que tudo tem um lado só; e o nomeados de verdade. Acreditamos piamente em quem carrega nossa verdade sob os braços e a eles demonstramos nossa empatia, só a eles. Empatia seletiva é um recurso de proteção do próprio ódio, que se alia à mais profunda vontade de conservação. O ódio movimenta erupções: grandes demonstrações destrutivas sem nenhuma perspectiva de construção; a lava deixa o solo infértil.
Tristes, afirmamos cada vez menos. Tomamos gosto pela negação, o ódio tem a mesma propriedade do açúcar refinado: ele adoça e rouba o sabor. Nos afastamos da política de Espinosa, a da afirmação, a da constituição comum, baseada na alegria, na sinceridade e no amor; e vamos em direção a uma política de ódio, de negação, aquela que investe no poder e esquece-se da potência. A pergunta de Espinosa ainda é atual: o que pode um corpo? Para nós, cabe perguntar, o que pode um corpo inundado de tanto ódio? Pouco… pouquíssimo… ou quase nada.
Texto da série: Afetos (bio)Políticos

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