21 de dezembro de 2010

Camille Claudel – Sonhos e Pesadelos

"A Valsa" (1892)

                                                       


Por Rosa Montero

        Camille, a sequestrada; Camille, a prisioneira. Coxa e sedutora Camille, escultora de gênio, artista maldita e esquecida. Esta é a aterradora história de uma mulher que não “pôde ser”. Tinha tudo para triunfar: talento, inteligência, coragem, beleza. Mas as circunstâncias a foram desestruturando. “Todos esses maravilhosos dons que a natureza lhe havia outorgado só serviram para trazer-lhe a desgraça", disse seu irmão, o escritor Paul Claudel. Porque Camille era irmã do famoso autor francês, e foi amante do celebérrimo escultor Auguste Rodin. Enquanto os dois, o irmão e o amante, conquistavam um sucesso clamoroso, Camille foi afundando silenciosamente nas trevas.
Camille Claudel nasceu em Villeneuve (França), em 1864, e era filha mais velha de um coletor do registro de imóveis e de uma proprietária de terras provinciana que,  com o tempo viria a tornar-se seu maior algoz. Desde muito criança Camille foi diferente: por sua coxeadura, por sua extraordinária beleza e por seu caráter – radiante, orgulhoso, obstinado. Começou a esculpir e a modelar por sua própria conta, sem professores nem antecedentes na família, e aos 12 anos fez um grupo de argila tão expressivo que chamou a atenção dos artistas locais. Um deles, Boucher, apresentou-a ao diretor da escola de Belas Artes, que, ao ver sua obra, perguntou se ela tivera aulas com Rodin.


A Jovem Camille Claudel


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Por essa época a adolescente Camille nem conhecia esse nome, de modo que as semelhanças eram casuais: possivelmente ambos partilhassem as mesmas força e veracidade, no meio de um mundo criativo rotineiramente acadêmico. Que fique registrado, portanto, que Camille era Camille antes de Rodin entrar na sua vida. Porque uma das maldições que acabaram com ela foi a insistência em considerá-la uma mera discípula de seu amante.
Outra maldição foi a sua família. O pai tinha um caráter acérrimo e violento, e a vida doméstica em Villeneuve era uma gritaria constante.  Camille, contudo, dera um jeito de ser a filha preferida do rígido patriarca. Provavelmente essa posição de privilégio (ela era a queridinha do ditador) provocou  na sua mãe e na sua irmã algo muito semelhante a rancor: porque tanto uma como outra pareciam odiar Camille. E as coisas pioraram quando aos 17 ela foi enviada pelo pai a Paris, para que pudesse estudar escultura, acompanhada pela mãe e pelos outros dois (a furibunda irmã e Paul). Pode-se imaginar a humilhação dessa senhora, que se viu forçada a afastar-se do marido, a abandonar a sua querida Villeneuve e a mudar-se para a capital, para que a detestável  filha mais velha se dedicasse à arte (uma indecência). Mãe e irmã foram mulheres muito convencionais; o pai, em contraposição, era livre-pensador e franco-maçom.
E esta foi a terceira maldição de Camille: as convenções, os preconceitos. O fato de ter nascido no tempo e no lugar errados. Um pouco antes teria podido amparar-se no Romantismo e viver mais livremente, como George Sand. Um pouco depois pegaria a revolução dos anos 1920. Mas ela nasceu no seio de uma velha e estreita burguesia provinciana, e na época mais conservadora, tacanha e imobilista. As poucas moças que saíam da norma eram consideradas pouco menos do que prostitutas.
Quando Camille chegou a Paris, em 1881, era proibido às mulheres estudar  na escola de Belas-Artes (não foram admitidas nos ateliês até 1900, e até  1903 não lhes era permitido participar no Prêmio de Roma, fundamental para desenvolver uma carreira criativa). Mas a voluntariosa Camille se matriculou numa academia e alugou um estúdio com três jovens escultoras inglesas. Trabalhava incessantemente, apaixonadamente, como fez durante toda a sua vida (exceto no hospital). E dentro de pouco tempo, em 1883, conheceu Rodin. Ele tinha 44 anos e um barbudo e imponente aspecto de russo tolstoiano; ela estava com 19, sabia-se  genial e dispunha-se a devorar o mundo inteiro. Provavelmente os dois logo se tornaram amantes; ela passava o dia no estúdio dele, embora continuasse vivendo com a mãe (que a expulsou de casa em 1888, quando soube das suas pecaminosas relações). Durante uma década, Camille trabalhou como aprendiz no ateliê de Rodin.
No terreno sentimental a história da dupla parece ser tediosamente trivial: quando conheceu Camille, Rodin estava havia vinte anos com Rose, a mulher com quem dividiu toda a sua vida, e sua deslumbrante aprendiz foi relegada para sempre para o estreito e semiclandestino lugar de amante. Os dois nunca viveram juntos, limitando-se a compartilhar de algumas férias; e chamavam-se, cerimoniosamente, Monsieur Rodin e Mademoiselle Claudel. Mas isso, e o fato de se tratarem por senhor/senhorita não impediu que, segundo dizem, Camille engravidasse várias vezes (fala-se até de quatro gestações). Não se sabe se chegou a dar à luz e entregou os filhos para adoção ou se preferiu abortar, mas a existência de gravidezes parece muitoprovável. Seja como for, uma experiência consideravelmente brutal.
Se não se conhece com certeza algo tão fundamental na vida de Camille é porque ela parece estar amaldiçoada. Sua produção escultórica é belíssima, forte e delicada ao mesmo tempo (com obras-primas como A valsa, Sakuntala, Clotho, As banhistas...), mas muitas das suas peças se perderam e as restantes estão espalhadas em coleções particulares e museus remotos. E assim como a sua obra está fragmentada e meio esquecida, também sua biografia é cheia de sombras, de incógnitas e perdas: por exemplo, extraviaram-se as cartas ao seu pai e a Rodin.  Como se o destino desta mulher tivesse sido o de esfacelar-se, o de destruir-se. A vida de Camille Claudel é como aqueles desenhos na areia logo apagados pelas ondas.


Camille Claudel - "Jovem com um feixe [de trigo]" (1887)


Embora a relação sentimental com Rodin pareça bastante convencional, a artística, pelo contrário, é única. 
É claro que ele a influenciou, mas o que não está suficientemente reconhecido e quantificado é até que ponto a recíproca também é verdadeira: provavelmente ela o influenciou muito (a década que passaram juntos foi a de maior criatividade para Rodin). Às vezes produziram ao mesmo tempo esculturas praticamente idênticas, como Galateia, de Rodin, e A moça com feixe de cereais, ou Moça sentada de Claudel, mas quem copiava quem? No caso citado, a peça está muito mais dentro do estilo dela. Ao contrário de Auguste, Camille esculpia extraordináriamente o mármore, de modo que as peças feitas nesse material seguramente passaram pelas suas mãos. Por outro lado, as obras sem assinaturas foram atribuídas automaticamente a Rodin, embora pelo menos em uma ocasião tenha sido possível demonstrar posteriormente que a peça era de Camille. Além disso, ela colaborou em incontáveis esculturas de Rodin (sabe-se, por exemplo, que fez pelo menos as mãos e os pés de As portas do inferno).
Durante as décadas em que trabalhou com ele, e apesar de sua laboriosidade incessante, Camille assinou muito poucas obras: o resto do seu esforço, portanto, foi vampirizado pelo mestre. Não há provas de que Rodin a tenha remunerado alguma vez com um  salário fixo (que foi como ele próprio começou a ganhar a vida: com um emprego de aprendiz), como tampouco lhe pagou o trabalho de modelo: ela posou para ele incontáveis vezes, ocupação que consumia muito tempo e que habitualmente era remunerada. Quando Camille foi expulsa da casa de sua família em 1888, Rodin encarregou-se do aluguel e da despesas dela: na realidade um acordo humilhante que a condenava a ser a “amásia”, em vez de obter ajusta independência proveniente de um salário ganho com seu esforço.
Não quero com tudo isto dizer que Rodin não fosse um gênio; ele o era, disso não há dúvida. Mas Claudel também era genial, e quando se conheceram ele era um homem já maduro e ela uma jovem transbordante de ideias. Rodin pôde tirar partido daquela criatividade e daquele talento, inclusive depois de romper a relação amorosa, porque o resto de sua obra,  até à sua morte em 1917, consistiu sobretudo em variações sobre os  temas surgidos durante seu período com Camille (frequentemente, talvez, a partir das ideias dela?). É verdade que Rodin escreveu cartas laudatórias sobre sua aprendiz e  recomendou vivamente o seu trabalho aos críticos; que quando ela adoeceu ele lhe deu a uma pensão de quinhentos francos anuais (uma miséria, sem dúvida); que acalentou a ideia de dedicar-lhe uma sala em seu museu Rodin, e que, quando lhe perguntaram sobre a sua discípula, respondeu com a célebre frase “eu lhe ensinei a buscar o ouro, mas o ouro que ela encontra é só seu”. Mas ao ver toda a história em seu conjunto, você não pode evitar a sensação de que Rodin se aproveitou da escultora; e de que, quando a apoiava, era por culpa e com um certo paternalismo.


"A Onda" (1903)


Em 1893 Camille tinha 29 anos e já não era a moça de antes, disposta a devorar o mundo. A vida tinha dispersado seus sonhos; o amor de Rodin transformara-se numa rotina clandestina e talvez sórdida, e por mais que se esforçasse como escultora, seu  talento não era reconhecido: a sombra do mestre a esmagava. Por isso, Camille rompeu com Rodin nesse ano (embora os dois continuassem se vendo e passando as férias juntos até 1898) e  buscou seu próprio estúdio. É de supor-se que a partir de então se manteve  a si mesma, o que a condenou a um empobrecimento progressivo até chegar a aflorar a autêntica miséria. A escultura é uma arte muito cara: Camille tomava empréstimos, endividava-se, trabalhava no design industrial fazendo luminárias art nouveau; mas mal conseguia pagar as matérias primas, e não conseguia custear os modelos nem os ajudantes, de modo que tinha de trabalhar de memória e fazer tudo sozinha, incluindo a cansativa tarefa de polir. Vivia em habitações tenebrosas e carecia do mais básico: aquecimento no inverno (com as temperaturas congelantes, a argila se desmanchava), de roupa decente: “Não tenho casaco nem sapatos, as minhas botas estão completamente gastas”. Mas se esforçava, e muito para obter uma obra sublime, por ser reconhecida. Vivia somente para o trabalho; salvo uma efêmera e pouco clara relação com o compositor Debussy, Camille não voltou a apaixonar-se e foi-se encerrando cada vez mais em si mesma. A imprensa e a sociedade conservadoras catalogavam as suas esculturas inovadoras como “mastodontes de gesso”, embora no final do século alguns críticos importantes começassem a afirmar que Claudel era genial. Mas esta apreciação era minoritária demais e Camille continuava sem poder se manter. Enquanto isso, Rodin triunfava clamorosamente com umas esculturas ainda mais transgressoras do que as de Camille (e, como vimos mais acima, talvez inspiradas nas idéias dela). Por que motivo o radicalismo dele era aceito e o dela não? Até os críticos que a admiravam a viam como uma anormalidade: “Uma revolução contra natureza: a mulher de gênio”, dizia um; e os outros elogiavam a sua escultura dizendo que era “viril e poderosa”. Há uma fotografia de Camille de 1889, depois que ela rompeu definitivamente com Rodin, gorda e envelhecida apesar de apenas ter trinta e cinco anos (ao que parece bebia muito), talhando um Perseu que corta a cabeça da Medusa: e o rosto da criatura decapitada é o seu próprio. Nessa altura Camille já se considerava  um monstro, uma Górgone outrora poderosa a quem o herói viril retalha a força e a garganta. E então ela enlouqueceu, é o que dizem as crônicas. Mania da perseguição, psicose paranóica. Toda a sua frustração e todo o seu agudo sentimento de injustiça viraram-se contra Rodin. Numa metáfora da realidade levada até ao delírio, Camille acreditava que Rodin roubava-lhe as ideias e que até liderava uma conspiração para matá-la. Trancou-se em sua miserável casa e não via ninguém. A partir de 1905 começou a quebrar à martelada todas as obras concluídas, para que os seus inimigos não pudessem apropriar-se delas. 
"As Bisbilhoteiras" (1893)

No dia 2 de Março de 1913 morre o pai de Camille (ela não tem conhecimento do fato: ninguém a avisou) e no dia 10 de Março dois enfermeiros irrompem em sua casa e levam-na à força para o hospital psiquiátrico de Ville-Evrard. Tinham-na encontrado toda encolhida na penumbra, rodeada pelos fragmentos das suas obras partidas. Camille estava desequilibrada, isso é claro, e certamente precisava de ajuda médica. Mas é também como se, uma vez morto o pai, a mãe se vingasse. E essa suposta vingança é terrível, repulsiva. Em 1915, Camille foi transferida de Ville-Evrard para Montdevergues, um manicômio muito longe de Paris e de uma reputação sinistra. E não mais saiu delá, apesar de suas constantes e comovedoras súplicas. Morreu naquela prisão em 1943. Passou trinta anos internada. Durante todo este tempo Camille não parou de pedir pateticamente que a tirassem dali. Primeiro reclamava que a pusessem em liberdade; depois, à medida que os anos passavam e ia perdendo as esperanças, apenas suplicava que a transferissem para outro hospital em Paris, para assim estar mais perto dos seus. E no fim a única coisa que pedia era que a visitassem. Nem a sua mãe (que morreu em 1929) nem a sua irmã Louise foram alguma vez vê-la. Paul, sim, visitava-a, mas muito pouco, em parte porque viveu durante muito tempo fora de França. Paul foi, de toda a família, quem mais afeto mostrou por Camille; mas apesar da sua preocupação por ela, a sua atitude neste assunto é um tanto ambígua. De fato, foi ele quem a meteu no hospital e, por outro lado, por que não a libertou ou pelo menos não a mudou de hospital depois da morte da mãe? Camille manteve até ao fim dos seus dias as suas manias de perseguição centradas em Rodin, mas, fora isto, estava completamente lúcida e não era nada agressiva. Não parece que fosse realmente necessário mantê-la encerrada. Embora se preocupasse com a sua filha no aspecto material, no resto a viúva Claudel comportou-se com uma dureza que me atreveria a qualificar de sanha. Por exemplo, proibiu-a escrever e receber cartas (exceto as de Paul ou as suas), bem como receber visitas. O manicômio era um lugar gelado (“está tanto frio que hoje nem consegui levantar-me”) onde não havia qualquer atividade organizada, pelo que Camille passava os dias imersa numa atonia amorfa e absoluta. Em 1920, o diretor do hospital psiquiátrico disse que os delírios de Camille já estavam muito mais suaves e que se podia tentar uma saída do manicômio: mas a mãe se opôs a essa ideia. Então o médico propôs que pelo menos a transferissem para Paris, para mais perto dos amigos e da família, “porque a ausência de visitas é muito dolorosa para a menina Claudel”. Mas também a isto se opôs a anciã: possivelmente ela queria a filha longe, muito longe, enterrada em vida. Em 1927, o novo diretor de Montde-vergues também teve pena do terrível castigo de Camille e escreveu à viúva para que fosse ver a filha, coisa que “daria uma grande alegria a nossa enferma , devolvendo a ela alguma esperança de libertação”. Mas também este pedido foi ignorado. “[Camille] tem todos os vícios, não a quero ver, fez-nos muito mal”, escreve a mãe ao médico. A vingança de sua mãe não é só pessoal, mas também social: é a burguesia ultraconservadora que castiga a rebelde. “Censuram-me - oh, crime espantoso! pelo fato de eu ter vivido sozinha”, escreve Camille em 1917.


"Reflexão Profunda" (1898)

No manicômio ninguém conhecia a sua profissão de escultora: ali era simplesmente a irmã de Paul Claudel. O amante de um ou a irmã de outro, mas nunca ela própria: como digo, o seu destino foi desaparecer. A atual Enciclopédia Britânica concede uma fotografia e duas colunas de texto a Paul Claudel, mas a Camille, que vem mesmo por cima, só lhe concede a seguinte linha: “(c. 1883-1898), amante e modelo de Rodin”. Repare-se que as datas só abrangem o período que Camille passou com Auguste, como se fora dessa relação ela não tivesse existido. Quando, doze anos depois da sua morte, os herdeiros quiseram recuperar o cadáver da artista e tirá-lo do cemitério do manicômio, foram informados de que a zona fora remexida e de que os restos mortais se tinham perdido: Camille nem sequer tem uma sepultura. Existe uma fotografia dela nos anos trinta em que aparece transformada numa anciã consumida, com um casaco enorme, um chapéu ridículo e uma comovente expressão de tristeza. Foi nessa época que ela escreveu a um amigo estas frases tremendas: “Caí no abismo. Do sonho que foi a minha vida, isto é o pesadelo”.


"A Idade Madura" (1899) - Museu D'Orsay - Paris



BIBLIOGRAFIA
Camille Claudel, La internada, Anne Rivière, Nuevo Arte Thor. Camille Claudel,
Reine-Marie Paris,
Gallimard, Paris. Une Femme, Anne Delbée, Le Livre de Poche, Paris. Significam
Others, Livro colectivo;
ensaio sobre Claudel, de Anne Higonnet, Thames and Huston, Londres.

15 de dezembro de 2010

A última entrevista de Clarice Lispector foi concedida a TV Cultura em 1977


 









A Imagem mais duradoura de Clarice Lispector no final da vida, talvez a imagem mais duradoura de Clarice Lispector em qualquer momento da vida, vem de uma entrevista que ela deu em Fevereiro de 1977. Foi a única vez que Clarice falou diante de uma câmera, e, por essas imagens serem únicas, a entrevista teve um impacto muito maior na sua imagem pública do que as que ela concedeu quando era mais jovem, mais saudável ou mais enérgica.
É difícil assistir a entrevista na íntegra. Com seu célebre olhar penetrante, Clarice encara diretamente o entrevistador, seu rosto uma máscara quase imóvel. Sentada numa cadeira de couro pardo, segura uma grande carteira branca na mão esquerda e um cigarro Hollywood na queimada mão direita. Fumando sem parar no meio de um gigantesco estúdio cinzento, pontuando a entrevista com longos e sugestivos silêncios, ela responde as perguntas com sua voz estranha e inconfundível.
Todos no estúdio tinham uma sensação de presságio, disse o entrevistador, o jornalista judeu Julio Lerner. Ele estava consciente do tremendo peso do momento e sentia uma responsabilidade histórica: "Nem kafka, nem Dostoiévski, nem Fernando Pessoa, nem Peretz" jamais tinham sido registrados em filme. Cabia a ele registrar Clarice Lispector. Dispunha de trinta minutos.

12 de dezembro de 2010

O LIVRO APÓCRIFO DE I ENOQUE, OU ENOQUE ETÍOPE (RESUMO)


Por Jones Mendonça

Um dos livros apócrifos mais fascinantes é sem dúvida o livro de I Enoque (ou Enoque etíope), geralmente datado para o século II a.C. Este livro foi redigido originalmente em aramaico, mas a única versão disponível hoje está em etíope. Escrito em linguagem apocalíptica, entre 170 e 64 a.C., o livro carrega algumas semelhanças com o Apocalipse de João, cuja composição se deu mais de dois séculos depois. Abaixo um trecho do livro que descreve o nascimento de Noé:
Depois de alguns dias, meu filho Matusalém escolheu uma mulher para seu filho Lamech; ela engravidou e deu à luz um menino. O seu corpo era branco como a neve e vermelho como uma rosa, os cabelos da sua cabeça eram como a lã e os seus olhos como os raios do sol. Quando abriu os olhos encheu a casa de luz como o sol, e toda ela ficou muito iluminada (I En 106,1).
Outra parte bastante interessante do livro são os capítulos 6 a 16, que narram a queda dos anjos após desobedecerem a Deus acasalando-se com as mulheres humanas. Tudo começa com Semjaza, um anjo disposto a pagar o preço por sua desobediência. Ele relata seu desejo aos demais anjos, que decidem segui-lo no plano. Semjasa é acompanhado por mais dezoito anjos, que por sua vez chefiam, cada um, outros dez. Após levarem a cabo o plano, problemas inusitados começam a surgir:
Elas [as mulheres humanas] engravidaram e deram à luz a gigantes de 3.000 côvados de altura. Estes consumiram todas as provisões de alimentos dos demais homens. E quando as pessoas nada mais tinham para dar-lhes os gigantes voltaram-se contra elas e começaram a devorá-las (I En 6,2).
Mas os problemas não param por aí. Os anjos rebeldes transmitem seus conhecimentos aos homens, tais como a astrologia, a metalurgia, a ciência da confecção de cosméticos, as fases da lua, a feitiçaria, etc. Tais conhecimentos causam muitas guerras e o homem chega perto da aniquilação.

Após ouvirem o clamor dos homens e virem todas as desgraças causadas pelos anjos rebeldes, Miguel, Uriel, Rafael e Gabriel relatam o problema ao “Senhor dos mundos”, que decide purificar a terra com um dilúvio e punir os anjos perversos lançando-os num abismo de fogo.

O livro é fruto de uma tentativa de preencher uma lacuna existente no capítulo seis do livro do Gênesis:
“viram os filhos de Deus (hb. bney haelohim) que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram” (Gn 6,2).
No relato do livro de Enoque os bney haelohim (filhos de Deus) são os anjos e a decisão de Deus de destruir a terra (Gn 6,7) é provocada por esse episódio.

Resquícios da história contada neste livro são percebidos na epístola de Judas (Jd 14, s).

Para ler mais a respeito dos livros apócrifos, clique aqui.

Imagem:
Beccafumi, Domenico
Queda dos Anjos Rebeldes
c. 1528
Óleo sobre madeira, 347 x 225 cm
San Niccolò al Carmine, Siena